Newsletter #24 - A Santa e a Fisioterapia Respiratória
A Santa e a Fisioterapia Respiratória
Pouca gente sabe, mas a única santa brasileira foi atendida por fisioterapeutas respiratórios — alguns deles, inclusive, foram meus professores. E sua condição respiratória provavelmente foi determinante para o desenvolvimento da fisioterapia respiratória no Brasil.
Santa Dulce dos Pobres, a Irmã Dulce, sofria de uma doença respiratória crônica grave. Segundo relatos, sua função pulmonar era severamente comprometida — na biografia oficial consta uma redução de 70% da capacidade pulmonar. Essa limitação respiratória foi provavelmente consequência de tuberculose e múltiplas infecções pulmonares adquiridas no cuidado com pacientes enfermos, muitas vezes sem proteção adequada. Essas infecções recorrentes, com o tempo, resultaram em dilatações permanentes nos brônquios, uma condição conhecida como bronquiectasia.
Nos últimos anos de vida, Irmã Dulce estava profundamente debilitada. Chegou a pesar apenas 38 kg, apresentando todas as complicações típicas da bronquiectasia: desnutrição, dispneia aos esforços, infecções de repetição, queda na qualidade de vida, tosse crônica e hipersecreção de muco.
Foi justamente esse quadro respiratório que mobilizou o maior e mais respeitado fisioterapeuta respiratório da época, o Dr. Carlos Azeredo. Sua vinda para a Bahia trouxe consigo uma geração de fisioterapeutas, muitos deles formados por ele, que transformaram a fisioterapia baiana e a consolidaram como uma das mais fortes e respeitadas do país.

Lembrei dessa história quando li uma revisão recente e excelente, publicada neste mês na JAMA, sobre a bronquiectasia em adultos, com foco no manejo por meio de exercícios e técnicas de higiene brônquica.
Bronquiectasia - Definições e conceitos gerais
A bronquiectasia é definida como uma dilatação irreversível dos brônquios, identificada principalmente por meio da tomografia de tórax de alta resolução, onde se observa que o diâmetro das vias aéreas é maior que o dos vasos adjacentes. Essa alteração estrutural normalmente surge como consequência de infecções pulmonares recorrentes, inflamação crônica e acúmulo de secreções.
O diagnóstico é clínico-radiológico: é preciso haver sintomas respiratórios persistentes (tosse crônica, escarro diário, infecções de repetição) associados a alterações compatíveis na tomografia. A espirometria complementa a avaliação funcional, e embora muitos pacientes apresentem padrão obstrutivo (VEF1/CVF < 0,7), há grande variabilidade — podendo haver também padrões restritivos ou normais.
Estudos recentes indicam que a bronquiectasia não associada à fibrose cística é mais comum do que se imaginava. A prevalência vem aumentando, especialmente em idosos, mulheres e pessoas com DPOC, asma ou doenças autoimunes. Estima-se que entre 350 e 500 pessoas por 100 mil tenham a doença em algumas populações europeias, e no Brasil esse número tende a ser subestimado por falta de diagnóstico adequado.
Do ponto de vista prognóstico, a bronquiectasia é uma condição potencialmente progressiva. A taxa de mortalidade em cinco anos varia entre 12% e 20%, podendo ultrapassar 50% nos pacientes com DPOC associado. Se você acompanha pacientes com bronquiectasia, fique atento a sinais de pior prognóstico, como: infecções respiratórias frequentes (três ou mais por ano), colonização por Pseudomonas aeruginosa, baixo índice de massa corporal e VEF1 inferior a 50% do previsto.


Avaliação da Capacidade Funcional e Prescrição de Exercícios na Bronquiectasia
A redução da tolerância ao esforço é uma das queixas mais frequentes em pessoas com bronquiectasia. A combinação de obstrução ao fluxo aéreo, descondicionamento físico e inflamação persistente contribui para o comprometimento da capacidade funcional — o que reforça a importância de avaliá-la de forma sistemática.Testes para avaliação da aptidão cardiorrespiratória como o teste de caminhada de 6 minutos (TC6min), o Incremental Shuttle Walk Test, teste do degrau de 6 minutos (TD6min) são fundamentais para mensurar a capacidade funcional, resposta ao tratamento e necessidade de oxigênio suplementar. Além disso, o índice de gravidade da bronquiectasia (BSI) é uma escore específico que inclui parâmetros como VEF1, IMC, frequência de exacerbações e desempenho no TC6min.
A relação entre aptidão cardiorrespiratória e gravidade clínica já está bem estabelecida em diversas condições — sejam elas respiratórias, cardiovasculares ou neurológicas. Mas, para quem está na prática, é essencial contar com parâmetros específicos para cada doença, pois isso permite comparações mais precisas e individualizadas entre os pacientes.
No caso da bronquiectasia, essa relação ainda não está tão claramente estabelecida quanto em outras doenças pulmonares, como DPOC ou a fibrose pulmonar. Nos estudos que tive acesso, os pacientes com bronquiectasia caminharam em média cerca de 500 metros no TC6min, e os piores desfechos foram observados naqueles que percorreram menos de 75% do valor previsto.
Isso sugere que, em média, a bronquiectasia compromete menos a capacidade funcional do que a DPOC, e de forma ainda mais branda quando comparada à fibrose pulmonar.
Prescrição de exercício e reabilitação pulmonar
Todos os artigos consultados são unânimes: a reabilitação pulmonar deve fazer parte do cuidado de rotina nos pacientes com bronquiectasia sintomática. Programas supervisionados com exercício aeróbico (esteira, bicicleta), treino de força muscular e educação em saúde promovem:
Aumento da capacidade funcional
Redução da dispneia
Melhora da qualidade de vida
Menor número de exacerbações
Mesmo pacientes estáveis, quando submetidos a 6–12 semanas de treinamento supervisionado, apresentam ganhos significativos em distância percorrida, função pulmonar e sintomas respiratórios. Ainda assim, os dados do registro EMBARC mostram que menos de 20% dos pacientes são encaminhados para programas de reabilitação, o que revela uma lacuna importante na assistência e um NICHO de mercado em aberto.
Técnicas de clearance brônquica.
Um ponto que conecta a história de Santa Dulce com a fisioterapia respiratória moderna é o uso das técnicas de higiene brônquica, que de fato são parte essencial do manejo crônico das pessoas com bronquiectasia. No entanto, a prática clínica ainda mostra um foco desproporcional nesse único aspecto do tratamento. Vejo muitos profissionais respiratórios concentrando toda a assistência apenas na remoção de secreções — o que não está em consonância com as diretrizes mais recentes.
A própria diretriz da European Respiratory Society (ERS, 2017) é clara ao afirmar que: "As técnicas de higiene brônquica devem ser vistas como um dos componentes de uma abordagem mais ampla e multidisciplinar para o manejo da bronquiectasia, que inclui controle de infecções, redução da inflamação, suporte nutricional e treinamento físico."
3 pontos importantes sobre o assunto:
🔹 Primeiro ponto: não existe uma técnica claramente superior às demais. A maioria dos estudos comparativos mostra que técnicas como o ciclo ativo da respiração (ACBT), Flutter, Acapella, drenagem autogênica e ELTGOLproporcionam benefícios semelhantes quanto ao volume de escarro mobilizado, sintomas respiratórios e qualidade de vida. A revisão da Cochrane publicada em 2017 não encontrou diferenças significativas entre as técnicas com pressão positiva e as ativas em termos de eficácia na remoção de secreção.
Vejo com certa preocupação a forma como muitos fisioterapeutas incorporam rapidamente novas tecnologias à prática, sem que essas ferramentas tenham passado por avaliação científica adequada. Isso nos leva a aplicar intervenções sem que o paciente saiba que aquele "remédio" ainda não foi testado, comprometendo a segurança e a previsibilidade dos resultados.
🔹 Segundo ponto: as técnicas para auxiliar na higiene brônquica não podem ser realizada apenas durante os atendimentos fisioterapêuticos. O autocuidado, com a realização rotineira da técnica em casa, deve fazer parte da rotina desses pacientes.
🔹 Terceiro ponto: as recomendações sugerem que a combinação de agentes mucoativos com as técnicas de higiene brônquica pode potencializar seus resultados. A nebulização com solução salina hipertônica (6–7%), por exemplo, reduz a viscosidade do muco e facilita seu deslocamento ao longo das vias aéreas. Embora não haja consenso sobre qual agente é mais eficaz, essa combinação costuma melhorar os resultados.
Antes que eu me esqueça: a canonização de Santa Dulce dos Pobres aconteceu em 13 de outubro de 2019 — justamente no dia em que celebramos o Dia do Fisioterapeuta. Coincidência ? Eu gosto de pensar que isso foi uma bela forma da Santa homenagear os profissionais que a ajudaram a respirar melhor.
Na foto abaixo eu estava no estágio curricular que acontecia no asilo criado pela Santa para abrigar idosos carentes. A vovó da foto tinha mais de 90 anos, conviveu com a irmã dulce e me disse que sentia a presença dela.

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Te encontro lá,
Francisco Oliveira - Fisioterapeuta e divulgador científico da Central da Reabilitação.