Newsletter #23: O Lado Esquecido do Coração
Quando estudamos a fisiologia e fisiopatologia cardiovascular, a região mais valorizada e estudada é, sem dúvida, o ventrículo esquerdo. Isso fica evidente para mim quando falamos de fração de ejeção, pós-carga ou mostramos a clássica curva de pressão-volume— que, não por acaso, quase sempre é a do VE. Mas será que não estamos deixando de lado um personagem igualmente importante nessa história?
Como falamos muito pouco sobre o VD, as diferenças anatômicas e funcionais entre os ventrículos são pouco conhecidas entre muitos profissionais e, por isso, nesta 23ª edição da nossa newsletter, vamos jogar luz no ventrículo direito e mostrar o seu verdadeiro valor.
1. Anatomia dos ventrículos
As diferenças entre os dois ventrículos começam na anatomia. O VE esquerdo tem um formato cônico e o VD tem um formato semelhante uma meia lua, ou em fora de "C" . Veja a imagem abaixo e tire suas próprias conclusões

Observe nesta imagem de ressonância magnética o ventrículo esquerdo com formato ovalado e massa muscular bem pronunciada, enquanto o ventrículo direito apresenta uma camada fina de músculo e um formato que parece abraçar o VE. AP- artéria pulmonar; DA- descendente anterior; VE- ventrículo equerdo; VD- ventrículo direito
2. Pressão e resistência
Enquanto o VE precisa vencer pressões médias da ordem de 90 a 100 mmHg, o VD trabalha contra apenas 14 a 18 mmHg. É essa diferença que faz com que o VE necessite de uma parede muscular espessa e uma contração potente — já o VD é mais fino, e é mais complacente do VE.
"Enquanto o ventrículo esquerdo opera contra uma resistência alta, o ventrículo direito é adaptado para empurrar sangue através de um sistema de baixa resistência. Por isso, qualquer aumento súbito na pressão pulmonar pode desestabilizar sua função." (El Hajj et al.)
Essa diferença funcional faz com que o ventrículo direito tolere muito menos variações na pós-carga, entrando em insuficiência rapidamente diante de aumentos súbitos da resistência vascular pulmonar. Essa informação é de extrema importância para profissionais que atuam em unidades de terapia intensiva, onde tanto doenças como tromboembolismo pulmonar (TEP) e hipoxemia severa, quanto a própria ventilação com pressão positiva, podem impor uma resistência que o ventrículo direito não é capaz de suportar.

Nesta imagem podemos observar que uma pequena variação da pressão da artéria pulmonar induz uma redução importante do volume sistólico do VD. Em contrapartida, no VE é necessário um aumento muito maior da pressão aórtica para apresentar uma redução discreta do volume sistólico.
3. Padrão de contração e formato
O coração não se contrai apenas apertando de fora para dentro. Ele torce, gira, encurta e relaxa numa sequência coordenada que lembra o movimento de uma toalha sendo torcida. Essa mecânica acontece porque as fibras musculares do ventrículo são organizadas em espiral — ou, de forma mais técnica, em um padrão helicoidal. Isso significa que o músculo cardíaco forma uma espécie de fita enrolada sobre si mesma, com fibras internas puxando de cima para baixo (do átrio para o ápice) e fibras externas puxando de baixo para cima (do ápice para a base). Primeiro, o coração se prepara para a ejeção com uma contração transversal que reduz o diâmetro da cavidade. Em seguida, vem a torção: a base gira em uma direção, o ápice em outra. Esse movimento em sentidos opostos espreme o sangue com mais eficiência e ainda armazena energia que será liberada no início da diástole, ajudando o ventrículo a se encher rapidamente. É um sistema engenhoso, onde força e elasticidade trabalham juntas em cada batimento.
Já o ventrículo direito, que tem uma parede mais fina e uma anatomia em forma de meia-lua, apresenta um padrão de contração predominantemente longitudinal — como se encurtasse da base para o ápice — e depende fortemente do deslocamento do septo interventricular para ejetar o sangue com eficiência. Ao contrário do VE, o VD não realiza torção significativa, e por isso sua função é mais vulnerável a sobrecargas de pressão ou alterações na mecânica ventricular esquerda.


5. Perfusão e tolerância ao estresse
O VE recebe fluxo coronariano quase exclusivamente na diástole. O VD, por operar sob baixa pressão, é perfundido durante todo o ciclo cardíaco, o que em teoria o protege mais — mas na prática, sua reserva contrátil é bem menor.
"A presença ou não de reserva contrátil do VD durante o estresse pode determinar o prognóstico mesmo quando a função de repouso parece preservada." (El Hajj et al.)
Estudo reforça: VD importa (e muito!) na capacidade funcional
Um estudo publicado na Circulation: Cardiovascular Imaging (Kim et al., 2016) avaliou mais de dois mil pacientes submetidos a teste de esforço e ecocardiograma, e trouxe uma descoberta interessante: pacientes com disfunção do ventrículo direito — especialmente aqueles com infarto envolvendo o VD — apresentaram maior limitação funcional, além de menor frequência cardíaca e pressão arterial máximas durante o esforço. Ou seja, mesmo quando o ventrículo esquerdo estava preservado, o comprometimento do VD já era suficiente para reduzir de forma significativa a capacidade de exercício.
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Te encontro lá,
Por: Francisco Oliveira
Divulgador científico da central da reabilitação
Principais referências utilizadas nesta edição
1. Kim JH, Klem I, Shah DJ, et al.Right Ventricular Dysfunction Impairs Effort Tolerance Independent of Left Ventricular Function Among Patients Undergoing Exercise Stress Myocardial Perfusion Imaging. Circulation: Cardiovascular Imaging.